Milhares de falecidos, milhões de falidos, e
incontáveis feridos. São os rastros da pandemia, gerada pelo novo coronavírus.
A tragédia de tantos falecidos assusta e mobiliza previsões, prevenções e ações
práticas. Diante da ameaça da vida tudo o mais perde a força e o sentido. Os
investimentos são direcionados para diminuir ao máximo a ameaça da perda da
vida, seja a própria, ou de pessoas do círculo mais próximo ou distante. Outra
tragédia é perceber que a fome também se mostra como inimiga latente. Essa que
invade barrigas em barracos onde “ficar em casa” significa não poder sair para
garantir o pão de cada dia. Um sentimento muito diferente de se ficar em casa
enfastiado pelo tédio de não se saber o que fazer ao longo do dia. Ainda há
muitos outros que não falecerão pelo vírus, não perderão seus empregos, não
sentirão a barriga roncar de fome, mas, mesmo assim, sairão feridos dessa
batalha. De alguma forma, estejamos entre os falecidos, falidos ou feridos,
essa pandemia nos afeta ou afetará a todos.
As crises escancaram as interioridades, revelam
as maldades ou as bondades, munem de pedrões ou de perdões, evidenciam o
potencial humano para repudiar ou acolher, para abandonar ou cuidar. Nas
situações extremas, surgem inúmeras oportunidades de alavancar o bem para muito
acima do mal. No entanto, infelizmente nem sempre assim se faz. Pode ser
assustador constatar, em meio às dores, que há inúmeras intencionalidades do
aproveitamento próprio, dos interesses políticos, religiosos e econômicos.
Intencionalidades que se mostram em atos conscientes usurpadores, que
contribuem para o aumento dos falecidos, falidos e feridos, algumas vezes tão
letais quanto a COVID-19. Mas, ao mesmo tempo, a esperança, de que as ameaças
serão vencidas, se renova e se mantém diante da afluência de um mar de gente
samaritana, que caminha solidariamente entre as dores dos rastros deixados pela
pandemia.
Gente samaritana é uma referência à parábola
bíblica do Bom Samaritano (Lucas 10.25-37). Essa parábola foi contada por
Jesus, ao responder para um perito da lei sobre quem seria o próximo, depois de
ter ensinado “ame o seu próximo como a si mesmo”. Na parábola, havia um homem
viajando em uma estrada. Ele caiu nas mãos de assaltantes, que tiraram suas
roupas, o espancaram quase até à morte e se foram. Alguns transeuntes, ao
passarem por aquela estrada, se depararam com a tragédia daquele homem. Um
deles, um sacerdote, quando o viu passou pelo outro lado da estrada. Assim
também um levita, ao ver o homem moribundo, desviou-se do caminho. Mas, o
samaritano, cidadão de Samaria, ao chegar naquele lugar e ver o homem
desfalecendo em dores, teve piedade dele. Parou sua viagem, fez por ele o que
pôde, enfaixou-lhe as feridas, derramou nelas vinho e óleo. Depois o colocou
sobre o seu próprio animal, o levou para uma hospedaria e cuidou dele. No dia
seguinte seguiu viagem, mas antes pagou ao hospedeiro o devido valor pela
estadia e deu recomendações de que seguisse cuidando daquele homem, pois
pagaria todas as despesas quando voltasse. Ao final da parábola Jesus pergunta
ao perito da lei: “Qual destes três você acha que foi o próximo do homem que
caiu nas mãos dos assaltantes?”. Ele rapidamente respondeu: “Aquele que teve
misericórdia”. E a recomendação de Jesus para ele foi: “Vá e faça o mesmo”.
A parábola é uma lição de humanidade, ao
clarificar que a misericórdia nos coloca na relação com o próximo. Nessa
proximidade relacional com o outro, aciona-se o potencial da nobreza, de um
caráter que mostra os valores mais consistentes para a vida humana. Quando a
morte assola a humanidade, o que mais se precisa é de gente samaritana com suas
expressões de misericórdia. Em meio à pandemia mundial atual, essa gente está,
em grande parte, nos hospitais, laboratórios, organizações e lares, mas também
nos mais variados e inusitados lugares.
Samaritanos que caminham entre falecidos, falidos
e feridos são todos aqueles que, mesmo arrolados nas estatísticas dos
atingidos, mostram misericórdia. O termo misericórdia carrega o significado de
clemência e piedade. Sua origem etimológica vem dos termos latinos MISERATIO,
derivado de MISERERE, que significa “compaixão” e CORDIS, derivado de COR,
“coração” (1).
Misericordiosos são pessoas cujo coração que bate
em favor do miserável. Sabem partilhar tanto das próprias dores e dissabores,
como do seu tempo, vestimenta, alimento, até mesmo se for o último pedaço de
pão. São solidários, não pela ausência de dores em si mesmo, mas por
compreenderem que o alívio se faz presente na partilha da alma e da vida com o
próximo. Essa partilha, que se mostra no repartir da intervenção, do
conhecimento, do cuidado, do trabalho, do afeto, do dinheiro, da comida, da
água, de uma máscara ou de um frasco de álcool em gel. Como comenta Vera
Shoenardie, em uma reunião de amigos em encontro virtual durante o
distanciamento social: “São pássaros feridos que cantam a Deus! Nele confiam
mesmo quando o céu está encoberto de densas nuvens. E ainda têm forças para
olhar com compaixão e generosidade para a dor e a necessidade do outro. Que a
graça e a misericórdia, daquele que acompanha nossa jornada, estejam entre
nós!”.
Os samaritanos que caminham entre os falecidos,
falidos e feridos estão em todos os lugares, nos hospitais, nos lares, nas
ruas, nas igrejas e nos mercados. São os pais que cuidam dos filhos, filhos que
cuidam dos pais, irmãos e amigos que se cuidam, mas também sabem olhar para
além, por seus vizinhos e colegas, para outros povos e nações. Além de
visualizar as necessidades do lar, mantém suas lentes ampliadas para as
misérias da rua, bairro, cidade, estado, país e mundo. Essa gente samaritana
vai ensinando para a sociedade atual, que já foi classificada por tantos
pensadores como a sociedade do espetáculo, do desempenho, da ideologia do
sucesso, da liquidez, da falência da solidariedade, das relações descartáveis e
do reino do dinheiro, que o foco é outro. A postura samaritana enfatiza que,
como habitantes do planeta, somos uma comunidade humana que tem como premissa o
cuidado de uns aos outros. Parece que os solidários caminhantes entre os
falecidos, falidos e feridos proclamam, em grandioso som, com seus atos de
misericórdia, qual deveria ser a verdadeira religião. Aquela declarada pelas
Sagradas Escrituras: “Religião de verdade, que agrada a Deus, o Pai, é esta:
cuidem dos necessitados e desamparados que sofrem e não entrem no esquema de
corrupção do mundo sem Deus” (Tiago 1.27, A Mensagem).
Cuidar dos necessitados e desamparados, e não se
render aos esquemas de corrupção, poderia salvar o planeta, não somente dessa
pandemia por causa do novo coronavírus, mas também da pobreza e da violência,
que promovem igualmente muitos falecidos, falidos e feridos. Que a afluência
dessa gente samaritana siga em expansão, e mesmo que também ferida, seja
protagonista do achatamento gráfico da curva dos falecidos, falidos e feridos
nessa crise. E que, posteriormente, quando a pandemia tiver sido vencida, a
sociedade possa ter alcançado uma nova classificação: − a sociedade da
solidariedade.
Fonte: https://cppc.org.br/noticias/samaritanos-entre-falecidos-falidos-e-feridos.htmlTítulo original do artigo:
“Samaritanos
entre falecidos, falidos e feridos escrito por Clarice Ebert”
Título alterado pelo autor do Blog.
CLARICE EBERT
Psicóloga (CRP08/14038)
Terapeuta Familiar e de Casal
Mestre em Teologia
Professora em cursos de pós-graduação
Supervisora de casos clínicos
Palestrante
Escritora
@clariceebert
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