sexta-feira, 6 de janeiro de 2023

História dos Hebreus: Gênesis 1 ao 9

 

Capítulo 1

Criação do mundo. Adão e Eva desobedecem à ordem de Deus, e Ele os expulsa do paraíso terrestre.

 

1. Gênesis 1. No princípio, Deus criou o céu e a Terra, mas a Terra não era visível porque estava coberta de trevas espessas, e o Espírito de Deus adejava por cima dela. Deus ordenou em seguida que se fizesse a luz, e a luz apareceu imediatamen­te. Depois de ter considerado essa massa, Deus separou a luz das trevas. Às trevas chamou noite, e à luz, dia, dando ao começo do dia o nome de manhã, e ao fim, o de tarde. Foi ao primeiro dia que Moisés chamou "um dia", e não "o primeiro dia", por razões que eu poderia explicar, mas, como prometi escrever sobre todas essas coisas em um trabalho especial, reservo-me para falar disso nele.

No segundo dia, Deus criou o céu, separou-o de todo o resto e colocou-o por cima, como sendo o mais nobre. Rodeou-o de cristal e temperou-o com umida­de própria para formar as chuvas que regam docemente a terra, para torná-la fecunda. No terceiro dia, tornou fixa a terra, rodeou-a pelo mar e fê-la produzir as plantas com as suas respectivas sementes. No quarto dia, criou o Sol, a Lua e os outros astros e colocou-os no céu para lhe serem o ornamento principal. Re­gulou de tal maneira os seus movimentos e o seu curso que eles determinam claramente as estações e as revoluções do ano. No quinto dia, criou os peixes que nadam na água e os pássaros que voam no ar e quis que formassem casais, a fim de crescerem e se multiplicarem, cada um segundo a sua espécie. No sexto dia, criou os animais terrestres e distinguiu-os em sexos diversos, fazendo-os macho e fêmea. E, nesse mesmo dia, criou também o homem. Assim, segundo o que refere Moisés, Deus criou em seis dias o mundo e todas as coisas que nele existem. No sétimo dia, Ele descansou e deixou de trabalhar as grandes obras da criação do mundo: é por esse motivo que não trabalhamos nesse dia e lhe damos o nome de sábado, que em nossa língua quer dizer "descanso".

2.  Gênesis 2. Moisés fala ainda mais particularmente da criação do homem. Ele diz que Deus tomou pó da terra, fez o homem e, com a alma, inspirou nele o espírito e a vida. Ele acrescenta que esse homem foi chamado Adão, que em hebreu significa "ruivo", porque a terra de que ele foi formado era dessa cor, que é a cor da terra natural e a qual se pode chamar virgem.

Deus mandou vir os animais, tanto os machos quanto as fêmeas, para dian­te de Adão, e este, o primeiro de todos os homens, deu-lhes os nomes que conservam ainda hoje.

3.  Deus, vendo que Adão estava sozinho, enquanto os outros animais ti­nham cada qual uma companheira, quis também dar-lhe uma consorte. Para isso, quando ele estava adormecido, tirou-lhe uma das costelas, da qual for­mou a mulher. E, logo que Adão a viu, percebeu que ela havia sido tirada dele e que era parte dele mesmo. Os hebreus dão à mulher o nome de Issa, e a que foi a primeira de todas chamou-se Eva, isto é, "mãe de todos os viventes".

4.  Moisés narra em seguida como Deus plantou do lado do oriente um delicioso jardim, que cumulou de todas as espécies de plantas, entre elas, duas árvores, uma das quais era a árvore da vida, e a outra, a da ciência, que ensinava a discernir o bem do mal. Ele colocou Adão e Eva nesse jardim e mandou que cultivassem as plantas. O jardim era regado por um grande rio, que o rodeava completamente e se dividia em quatro outros rios. O primeiro desses rios, chamado Pisom, que significa "plenitude" e ao qual os gregos chamam Canges, corre para a índia e desemboca no mar. O segundo, que se chama Eufrates e Fora, em nossa língua, significa "dispersão" ou "flor", e o terceiro, a que chamam Tigre ou Diglath, que significa "estreito e rápido", ambos desembocam no mar Vermelho. O quarto, de nome Giom, que significa "que vem do oriente", é chamado Nilo pelos gregos e atravessa todo o Egito.

5. Deus ordenou a Adão e Eva que comessem de todos os frutos, mas lhes proibiu de tocar no da ciência, alertando-os de que morreriam se o comessem. Havia então perfeita harmonia entre todos os animais, e a serpente estava muito acostumada com Adão e Eva. Mas como a sua malícia a fizesse invejar a felicidade de que ambos desfrutariam se observassem a ordem de Deus e julgasse ela que, ao contrário, eles seriam vítimas de todas as desgraças se desobedecessem, tratou de persuadir Eva a comer do fruto proibido. Para melhor induzi-la, disse-lhe que o fruto continha uma virtude secreta, que dava o conhecimento do bem e do mal, e que se ela e o marido comessem dele, seriam tão felizes quanto Deus. Assim, a serpente enganou a mu­lher, e esta desprezou a ordem divina: comeu o fruto, alegrou-se por tê-lo feito e induziu Adão a comê-lo também. Ora, como era verdade que o fruto dava grandíssimo discernimento, eles logo perceberam que estavam nus e sentiram vergonha. Então tomaram folhas de figueira para se cobrir, julgando-se mais felizes do que antes, porque agora conheciam o que até ali haviam ignorado.

Deus entrou no jardim, e Adão, que antes do pecado conversava familiar­mente com Ele, não ousou apresentar-se, por causa da falta que havia cometi­do. Deus perguntou-lhe por que, em vez de sentir prazer em se aproximar dEle, estava fugindo e se escondendo. Como Adão não soubesse o que respon­der, porque se sentia culpado, Deus lhe disse: "Eu vos havia provido de tudo o que poderíeis desejar para viver sem penas e com prazer uma vida isenta de qualquer cuidado, que teria sido ao mesmo tempo muito longa e feliz. Mas vós vos opusestes ao meu desígnio, desprezastes a minha ordem e não é por res­peito que vos calais, mas porque a vossa consciência vos acusa". Adão, então, fez o que podia para se desculpar, pediu a Deus que lhe perdoasse e lançou a sua falta sobre a mulher, que o enganara e fora a causa de seu pecado. Ela, por sua vez, alegou que a serpente a havia enganado. Por isso Deus, para castigar Adão por assim se ter deixado vencer, declarou que a terra não produziria mais frutos, a não ser para aqueles que a cultivassem com o suor do rosto, e mesmo assim não daria tudo o que dela se poderia desejar. Castigou também Eva, estabelecendo que, por se haver deixado enganar pela serpente e atraído to­dos aqueles males sobre o marido, ela teria filhos com dor e sofrimento. E, para castigar a serpente pela sua malícia, condenou-a a rastejar pela terra, declaran­do que ela seria inimiga do homem. Depois que Deus impôs a todos o devido castigo, expulsou Adão e Eva daquele jardim de delícias.

 

Capítulo 2

Caim mata seu irmão Abel. Deus o expulsa. Sua posteridade é tão má quanto ele. Virtudes de Sete, outro filho de Adão.

 

6. Gênesis 4. Adão e Eva tiveram dois filhos e três filhas. O primeiro chamava-se Caim, que significa "aquisição", e o segundo, Abei, que quer dizer "aflição". Os dois eram de temperamentos completamente opostos. Abel, que era pastor de reba­nhos, era mais justo. Considerava que Deus se fazia presente em todas as suas ações e só pensava em agradar-lhe. Caim, ao contrário, que por primeiro trabalhou a terra, era muito mau. Buscava apenas proveito próprio. A sua horrível impiedade levou-o ao excesso de furor, a ponto de matar o próprio irmão. Eis a causa disso:

Ambos resolveram oferecer um sacrifício a Deus, Caim, dos frutos de seu trabalho, e Abel, do leite e das primícias de seu rebanho. Deus demostrou aceitar melhor o sacrifício de Abel, que era produção livre da natureza, do que a oferta que a avareza de Caim dela havia tirado, quase à força. O orgulho de Caim não pôde tolerar que Deus tivesse preferido o irmão a ele: matou-o e escondeu o corpo, esperando que assim ninguém tivesse ciência de seu crime. Deus, porém, a cujos olhos nada há de oculto, perguntou-lhe onde estava o irmão, que não via há vários dias, pois antes eles estavam sempre juntos. Caim, não sabendo o que responder, disse primeiro que se admirava de também não o ter visto mais. Todavia, como Deus insistisse, respondeu-lhe insolen-temente que não era nem senhor nem guarda do irmão e que não se havia encarrega­do de cuidar daquilo que não lhe dizia respeito. Deus então perguntou-lhe como se atrevia a afirmar nada saber do que acontecera ao irmão, se ele mesmo o havia mata­do. E, se Caim não tivesse oferecido imediatamente um sacrifício para acalmar-lhe a cólera, teria recebido naquele mesmo instante o castigo que o seu crime bem merecia. Deus, no entanto, amaldiçoou-o, ameaçou castigar os seus descendentes até a sétima geração e expulsou-o. Porém, como Caim temesse que, andando errante, animais ferozes o devorassem, Deus o tranqüilizou contra esse temor. Deu-lhe um sinal, com o qual podia ser reconhecido, e ordenou-lhe que se fosse.

7. Depois de haver atravessado diversos países, Caim estabeleceu residência em um lugar chamado Node, onde teve vários filhos. No entanto o castigo, em vez de torná-lo melhor, fê-lo, ao contrário, muito pior. Abandonou-se a toda sorte de praze­res e até usou de violência, apoderando-se de bens alheios para enriquecer-se. Reu­niu homens maus e celerados, dos quais se tornou o chefe, e ensinou-os a cometer toda espécie de crimes e de ações ímpias. Mudou a inocente maneira de viver que adotara no princípio, inventou os pesos e as medidas e substituiu a franqueza e a sinceridade, tão mais louváveis e simples, pela astúcia e pelo engano. Ele foi o pri­meiro a estabelecer limites para a divisão de propriedades e construiu uma cidade. Chamou-a Enoque, nome de seu filho mais velho, rodeou-a de muralhas e a povoou.

Enoque teve por filho Irade, Irade gerou Meujael, Meujael a Metusalém e Metusalém a Lameque. Lameque teve setenta filhos de suas duas esposas, Zilá e Ada, um dos quais, de nome jabal, filho de Ada, foi o primeiro a morar embaixo de tendas e de pavilhões, levando uma vida de simples pastor. Jubal, seu irmão, inventou a música, o saltério e a harpa. Tubalcaim, filho de Zilá, sobrepujava a todos os outros em coragem e força, e foi grande comandante. Nesse entretempo, enriqueceu e serviu-se de suas riquezas para viver ainda mais suntuosamente do que até então. Ele inventou a arte de forjar e teve apenas uma filha, de nome Naamá. Como Lameque era muito instruído nas coisas divinas, julgou facilmente que sofreria a pena do assas-sínio de Caim, na pessoa de Abel, e disse-o às suas duas mulheres.

Eis como a posteridade de Caim chafurdou-se em toda espécie de crimes. Não se contentaram em imitar os de seus pais, mas inventaram outros. Entre eles, havia assassínios e latrocínios, e os que não mergulhavam as mãos em san­gue estavam cheios de orgulho e de avareza.

8. Adão ainda vivia e tinha cento e trinta anos. A morte de Abel e a fuga de Caim fizeram-no desejar ardentemente outros filhos. E teve mesmo vários: depois de viver ainda oitocentos anos, morreu na idade de novecentos e trinta anos.

9. Seria demasiado longo discorrer sobre todos os filhos de Adão. Contentar-me-ei em dizer algo de um deles, de nome Sete. Educado junto de seu pai, deu-se com afeto à virtude. Deixou filhos semelhantes a ele, que permaneceram em sua terra, onde viveram felizes e em perfeita união. Deve-se ao seu espírito e ao seu trabalho a ciência dos astros. Como os seus filhos haviam sido informados por Adão que o mundo pereceria pela água e pelo fogo, o medo de que essa ciência se perdesse antes que os homens a aprendessem levou-os a construir duas colunas, uma de tijolos e outra de pedras, e sobre elas gravaram os conhecimentos que possuíam. Se um dilúvio destruísse a coluna de tijolos, ficaria a de pedras, para conservar à poste­ridade a memória daquilo que haviam escrito. A previdência deles deu bom resulta­do, e afirma-se que a coluna de pedras pode ser vista ainda hoje, na Síria.

 

Capítulo 3

Da posteridade de Adão até o dilúvio, do qual Deus preservou Noé por meio da arca, prometendo-lhe não mais castigar os homens com dilúvio.

 

10. Gênesis 5. Sete gerações continuaram a viver no exercício da virtude e no culto do verdadeiro Deus, ao qual reconheciam por único Senhor do universo.

Mas as que vieram em seguida não imitaram os costumes dos pais. Não presta­vam mais a Deus a honra que lhe era devida nem exerciam mais a justiça para com os homens, mas se entregavam com mais ardor ainda a toda sorte de cri­mes, enquanto os seus antepassados se haviam dedicado à prática de toda espé­cie de virtudes. Assim, atraíram sobre si a cólera de Deus, e os grandes* da terra, que se haviam casado com as filhas dos descendentes de Caim, produziram uma raça indolente que, pela confiança que depositavam na própria força, se vanglo­riava de calcar aos pés a justiça e imitava os gigantes de que falam os gregos.

 

_____________________

* Nessa época, havia duas raças distintas: a descendência de Sete e a de Caim. Os expositores modernos, em sua maioria, concordam que os "filhos de Deus", citados em Gênesis 6.2, constituíam a descendência de Sete, e os "filhos dos homens", a descendên­cia de Caim. (N do E)

 

11. Noé, entristecido pela dor de vê-los imersos nos crimes, exortava-os a mu­dar de vida. Mas quando viu que em vez de seguir os seus conselhos eles se torna­vam cada vez piores, o temor de que o fizessem morrer com toda a sua família levou-o a deixar a sua pátria. Deus, que o amava por causa de sua probidade, ficou tão irritado pela malícia e corrupção do resto dos homens que resolveu não so­mente castigá-los, mas exterminá-los completamente e repovoar a terra com ho­mens que vivessem na pureza e na inocência. Assim, abreviou-lhes o tempo da vida, reduzindo-o a cento e vinte anos, inundou a terra de modo a parecer que ela havia sido tomada pelo mar e fê-los todos perecer nas águas, com exceção de Noé. A este, para salvá-lo, ordenou que construísse uma arca de quatro andares, com trezentos côvados de comprimento, cinqüenta de largura e trinta de altura; que lá se encerrasse com a esposa, os três filhos e as três esposas deles; e que levasse todo o necessário para o seu alimento e também para os animais de todas as espécies, os quais ele deveria levar consigo, para conservar-lhes a raça. Isto é, um casal de cada espécie, macho e fêmea, e sete casais de algumas. O teto e os lados da arca eram tão fortes que ela resistiu à violência das águas e dos ventos e salvou Noé e sua família da inundação geral que fez morrer todos os outros ho­mens. Ele era o décimo descendente de Adão, de masculino em masculino, pois era filho de Lameque, que era filho de Metusalém. Metusalém era filho de Jarede. Jarede era filho de Maalalel, que tinha vários irmãos. Maalalel era filho de Cainã. Cainã era filho de Enos. Enos era filho de Sete, e Sete era filho de Adão.

12. Noé tinha seiscentos anos quando veio o dilúvio. Foi no segundo mês, que os macedônios chamam dius, e os hebreus, maresvã, pois os egípcios assim dividiram o ano. Quanto a Moisés, ele deu, nos seus fastos, o primeiro lugar ao mês chamado nisã, que é o xântico macedônio, porque foi nesse mês que ele retirou os hebreus da terra do Egito e por essa razão começou por esse mesmo mês a registrar o que se refere ao culto a Deus. No que se refere às coisas civis, no entanto, como as feiras e mercados determinados pelo comércio e empreendimentos semelhantes, não hou­ve mudança alguma. Moisés registra que a chuva causadora do dilúvio geral come­çou a cair no dia 27 do segundo mês do ano 2256 depois da criação de Adão. A Sagrada Escritura faz o cálculo disso e anota com cuidado muito particular o nasci­mento e a morte dos grandes personagens daquele tempo.* Adão viveu novecentos e trinta anos e tinha duzentos e trinta** quando nasceu o seu filho Sete. Sete viveu novecentos e doze anos e tinha duzentos e cinco quando nasceu o seu filho Enos. Enos viveu novecentos e cinco anos e tinha cento e noventa quando nasceu o seu filho Cainã. Cainã viveu novecentos e dez anos e tinha cento e setenta quando nasceu o seu filho Maalalel. Maalalel viveu oitocentos e noventa e cinco anos e tinha cento e sessenta e cinco quando nasceu o seu filho Jarede. Jarede viveu novecentos e sessenta e dois anos e tinha cento e sessenta e dois quando nasceu o seu filho Enoque. Enoque viveu trezentos e sessenta e cinco anos e tinha cento e sessenta e cinco quando nasceu o seu filho Metusalem. Na idade de trezentos e sessenta e cinco anos, foi tirado do mundo, e ninguém escreveu sobre a sua morte.

Metusalem viveu novecentos e sessenta e nove anos e tinha cento e oitenta e sete quando nasceu o seu filho Lameque. Lameque viveu setecentos e setenta e sete anos e tinha cento e oitenta e dois quando nasceu o seu filho Noé. Noé viveu novecentos e cinqüenta anos, os quais, acrescentados aos seiscentos que já contava na ocasião do dilúvio, perfazem o número anteriormente assinalado de dois mil duzentos e cinqüenta e seis anos. Foi mais conveniente para esse cálculo citar, como fiz, a época do nascimento desses primeiros homens, e não a de sua morte, porque a vida deles era tão longa que se estendia até a poste­ridade mais remota.

 

____________________

* Este trecho está inteiramente corrompido no texto grego e foi corrigido pelo que dizem os manuscritos.

** Algumas idades neste trecho diferem do relato bíblico porque seguem a crono­logia da Septuaginta o texto da Bíblia é baseado na cronologia hebraica. (N do E)

 

13. Gênesis 7e8. Deus, então, deu o sinal e livre curso às águas, a fim de inunda­rem a terra, e elas elevaram-se, por uma chuva contínua de quarenta dias, até quinze côvados acima das mais altas montanhas e não deixaram nenhum lugar para onde o povo pudesse fugir e salvar-se. Depois que a chuva cessou, passaram-se cento e cinqüenta dias antes que as águas se retirassem, e somente no vigésimo sétimo dia do sétimo mês a arca se deteve sobre o vértice de uma montanha da Armênia. Noé então, abriu uma janela e, vendo um pouco de terra ao redor da arca, começou a se consolar e a conceber melhores esperanças. Alguns dias depois, ele fez sair um corvo para saber se havia ainda outros lugares de onde as águas se tivessem retirado com­pletamente e se ele podia sair sem perigo. O corvo, porém, achando a terra ainda toda inundada, voltou à arca. Sete dias depois, Noé fez sair uma pomba, e ela voltou com os pés enlameados, trazendo no bico um ramo de oliveira. Assim, ele soube que o dilúvio havia cessado. Após haver esperado outros sete dias, fez sair todos os ani­mais que estavam na arca. E ele também saiu, com a mulher e os filhos, ofereceu um sacrifício a Deus em ação de graças e deu um banquete à família.

Os armênios chamaram a esse lugar Descida ou Saída, e os seus habitantes apontam ainda hoje alguns restos da arca. Todos os historiadores, mesmo os bár­baros, falam do dilúvio e da arca, dentre outros Berose, caldeu. Eis as suas palavras: "Diz-se que ainda hoje se vêem restos da arca sobre a montanha dos Cordiens, na Armênia, e alguns levam desse lugar pedaços de betume, com o qual ela estava recoberta, e dele se servem como impermeabilizante". jerônimo, egípcio que es­creveu sobre as antigüidades dos fenícios, Mnazeas e vários outros disso falam também. Nicolau de Damasco, no nonagésimo sexto livro de sua história, menci­ona-o nestes termos: "Há na Armênia, na província de Miniade, uma alta monta­nha chamada Baris, sobre a qual, diz-se, muitos se salvaram durante o dilúvio, e que uma arca cujos restos se conservaram por vários anos, e na qual um homem se havia encerrado, deteve-se no cume dessa montanha. Há probabilidade de que esse homem é aquele de que fala Moisés, o legislador dos judeus".

14.  Gênesis 8 e 9. Com medo de que Deus inundasse a terra todos os anos, a fim de exterminar a raça dos homens, Noé ofereceu-lhe vítimas, rogando que nada mudasse na ordem estabelecida anteriormente e que Ele não usasse de tal rigor, fazendo perecer todas as criaturas vivas, mas se contentasse por ter casti­gado os maus, como os seus crimes mereciam, e por ter poupado os inocentes, aos quais Ele quisera salvar a vida. Pois, de outro modo, eles seriam ainda mais infelizes do que os que haviam sido sepultados nas águas, tendo visto com tremor tão estranha desolação e tendo dela sido preservados apenas para perecer mais tarde, de maneira semelhante. Assim, rogava que Deus aceitasse o seu sa­crifício e não mais olhasse para a terra com cólera, de jnodo que ele e seus descendentes pudessem cultivá-la sem medo, construir cidades, desfrutar de to­dos os bens que possuíam antes do dilúvio e passar uma vida tão longa quanto feliz, como a de seus antepassados.

Como Noé era homem justo, Deus atendeu à sua oração e concedeu-lhe o que pedia, dizendo-lhe que não fora o patriarca a causa dos que se haviam perdido no dilúvio; que eles só podiam acusar a si mesmos pelo castigo rece­bido; que, se tivesse querido perdê-los, não os teria feito nascer, sendo mais fácil não dar a vida do que a tirar após tê-la concedido; que eles deviam, portanto, atribuir os castigos aos seus próprios crimes; que, em consideração à sua oração, não lhes seria mais tão severo no futuro; e que, quando viessem tempestades e furacões extraordinários, nem ele nem seus descendentes de­veriam pensar num outro dilúvio, pois Ele não mais permitiria que as águas inundassem a terra. Contudo proibia a ele e aos seus manchar as mãos no sangue, e ordenava-lhes que castigassem severamente os homicidas, e os fa­zia senhores absolutos dos animais, para dispor deles como quisessem, exceto de seu sangue, do qual não podiam usar como do resto, porque no sangue está a vida. "E meu arco", acrescentou, "que vereis no céu, será o sinal e a garantia da promessa que vos faço". Isso disse Deus a Noé. E ao arco que apareceu no céu, chamaram arco de Deus.

15. Noé viveu trezentos e cinqüenta anos depois do dilúvio, na máxima prospe­ridade, e morreu com novecentos e cinqüenta anos de idade. Por maior que seja a diferença entre a pouca duração da vida dos homens de hoje e a longa duração da dos de que acabo de falar, o que narro não deve passar por inverossímil. É que, além de os nossos antepassados serem muito queridos de Deus, e como obra que Ele havia feito com as próprias mãos, os alimentos de que se nutriam eram mais apropri­ados para conservar a vida. E Deus a prolongava, tanto por causa de sua virtude como para lhes dar meios de aperfeiçoar as ciências da geometria e da astronomia, que eles haviam inventado o que eles não teriam podido fazer se tivessem vivido menos de seiscentos anos, pois é somente após a revolução de seis séculos que se completa o grande ano. Todos os que escreveram a história, tanto da Grécia como de outras nações, dão testemunho do que digo. Mâneto, que escreveu a história dos egípcios, Berose, que nos deixou a dos caldeus. Moco, Hestieu e Jerônimo, que escreveram a dosfenícios, dizem também a mesma coisa. Hesíodo, Hecateu, Ascausila, Helânico, Éforo e Nicolau, referem que esses primeiros homens viviam até mil anos. Deixo aos que lerem isto que façam o juízo que quiserem.


Nenhum comentário: